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domingo, 3 de março de 2013

Sexagésima Carta: A Ponte do Rio Morte

"Por mais que tentasse, tinha em mente que jamais transpassaria o muro, ou ainda que o escalaria para ter com a jovem a quem observava todos os malditos dias de sua vida com os olhos tristes e escondidos por sobre o parapeito da janela de seu quarto umbroso. E a via todo dia, a passar de lá pra cá, de cima a baixo, mesmo quando o sol a rachava a pele e não tocava ele. E foi por uma extrema e errônea curiosidade que um dia sentou-se no parapeito para melhor ver a jovem - é que ela crescia, e ele, encolhia... em segredo... em orgulho... E ela o viu, seus olhos penetraram a alma dele e quase o fizeram cair. Ele se escondeu e assim manteve-se por alguns dias, mas retornou a espreitar a jovem num dia qualquer, e mais uma vez ela o viu e, com uma doce voz, lhe implorou que não se escondesse.

- Atravesse.
- Não posso.
- Não consegues.
- Pois sim, consigo; mas não posso.
- Tens medo?
- Apenas receio.
- Por quê?
- Já vivo esta história há dois mil anos.

E rindo ela se foi, retornando ao varal para retirar as roupas. Ele se escondeu e jurou nunca mais aparecer - mas essa promessa já lhe vinha há mais de dois mil anos. Ela novamente implorou para que se mostrasse.

- Não posso ir, já lhe disse.
- Medo da queda?
- É o único caminho até este lugar... - e calado pensou, até retomar: - há o rio que nos separa também, tenha comigo lá.
- Não posso. - ela disse.
- Não consegues.
- Pois sim, consigo; mas não posso.
- Tens medo?
- Apenas receio de me afogar. Não há ponte.

Amedrontado e triste, ele se escondeu e jurou nunca mais pensar naquilo - mas essa promessa já lhe vinha há mais de dois mil anos. E então ela chamou novamente e antes que pudesse continuar, ele respondeu:

- Tome para si cinco dias. Logo estarei aí.
- O que farás?
- Pularei este muro.

Dito e feito, dali cinco dias em diante, todo maldito dia ele aparecia em frente ao portão dela, berrava-lhe e ela descia para ter abraços e beijos com ele, até que a lua chegasse para lhe dizer para partir.

- Leve-me até teu quarto. - ela implorou.
- Não posso. - ele retrucou.
- Não posso pular o muro ou estar em tua casa?
- Não podes sair daqui, de onde vives.
- Posso ao menos vê-lo saltar daquele alto muro?
- Não.

E triste, ela retornou para casa, e ele o mesmo fez. No seguinte dia e deste mais dez, ele continuou visitando-a no mesmo horário, no mesmo lugar, proibindo-lhe sempre de vê-lo pular o muro. Certo dia, sua curiosidade lhe fez esconder-se perto do muro, a ver seu amado saltar heroicamente por sobre o alto muro. Mas horas se passaram e nada dele aparecer. Triste, retornou para casa. E por mais cinco dias, ele aparecera, dizendo-lhe para jamais ir até o muro. Triste e curiosa, ela ordenou-lhe retornar para casa aos berros, e assim que se afastou um pouco, seguiu o rapaz vagarosa e atentamente. Entretanto, ele se desviou do muro e caminhou para outro lado, para o rio. Ela estranhou o fato, mas continuou seguindo, sem medo de como retornaria para casa, quanto menos se a sombra da noite lhe acolheria bem. Do rio, ele atravessou a ponte e ela tomou-se por raiva. Não era possível que seu amado mentira todo o tempo! NÃO ERA POSSÍVEL! Com um furioso berro, chamou-lhe pelo nome, seguidos estes de palavriados e a palavra que ele mais odiava, sabia ela - MENTIROSO! MENTIROSO! Berrava.

- Estou indo pra casa, mas- tentou dizer, mas ela o interrompia com palavrões e socos que mal algum lhe faziam.
- NÃO QUERO SABER, MENTIROSO! MENTISTE, MENTISTE!
- Deixe-me explic-
- CALA-TE!

Aos prantos, ela virou-se e correu para casa. Os olhos dele se encheram de lágrima, como em dois mil anos, e justo em seu primeiro ano de vida, temia o certo: ela nunca mais voltaria a lhe chamar, a lhe atender. E então parou de olhar-lhe pela janela, pois ela nunca o olhava de volta. E em trinta dias ele nunca mais a espreitou, e ela estranhou aquele fato. Tomou coragem e remorso para lhe atravessar a ponte do rio e procurar aquela casa, guiando-se pelo muro. E a casa não era diferente do que via de sua janela, quando queria saber se ele a espreitava. Estranhamente, a porta estava aberta, havia sacos de pedras e cimento por toda casa, baldes d'água e colheres... e uma estranha escada que levava ao segundo andar, onde, pensava ela, ser o quarto dele. E não errara.

E ao entrar, encontrou-se num quarto vazio e escuro, mas pode ver seu amado lá... os pés fora do chão... ele estava voando... com o pescoço preso numa corda no teto. Ela apenas foi capaz de gritar e cair de joelhos no chão...

... pois mal sabia ela que a tal ponte do rio, que lhe era uma farsa, fora feita pelas mãos do próprio rapaz que de desgosto e tristeza se matou para reviver no ano seguinte e fazer tudo novamente."

Cartas Diretas,
obrigado.

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